terça-feira, 9 de março de 2010

Carta uma

Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1943

A vocês,

escrevo-lhes esta carta pois temo o fim. Não desse mundo infinito, mas sim do que há por trás de meu peito. Há tanto, venho guardando milhares de pedaços de vidros, sem mostrar-lhes as feridas que suportei por seus cortes. Mas hoje, tenho medo, por isso, decidi escrever-lhes. Contar-lhes através de palavras, as minhas, o que sempre esteve escondido. Dentro de mim há mais vida que na Terra, mais mistério que em qualquer pessoa. Existe, aqui, uma parte clara, viva, colorida e, ao mesmo tempo, a sombra, lado lúgubre, muito escuro. Este vem crescendo com insigne rapidez, escurecendo toda parte encantadora restante. E, por isso, receio o fim. Meu fim, minha morte. Esse lado triste, eh resultado de muitas feridas, eh meu corpo adaptando-se a dor que me assola. Tantas foram as vezes que cacos de vidro me rasgaram, me perfuraram, que com o correr do tempo eu não sentia mais dores, via apenas as marcas. E tarde demais, percebi um mundo negro e ruim, ele havia formado-se aqui mesmo, dentro de mim. Resta-me tentar clareá-lo, talvez dizendo o que guardei a vida inteira. Digo-vos então que abro as portas de mim a vocês, a partir de hoje, transparecerei. Deixarei óbvio aquilo que sinto e que realmente penso. Como se eu morresse, renascerei, quero que minhas cinzas sejam jogadas ao mar e que misturem-se. Toda vez que as ondas vierem a costa, voltarei para um suspiro, e logo retornarei ao oceano. Tenho medo de morrer, mas vejo que eh necessário. Não enxergo meio mais confiável a alguém que queira mudar. Por mais que tentemos, nunca deixamos de ser nos mesmos, pois, no âmbito mais profundo de nossa alma, sabemos o que somos de verdade. Eh justamente isso que me aflige. Fosse outrora, eu conseguiria me reconhecer ao olhar-me. Mas desespero-me, hoje, quando vejo apenas a escuridão invadindo-me profundamente. Gostaria que ventos soprassem meus cabelos agora, que levassem todo meu medo, minha escuridão, que refizessem-me, trouxessem de volta quem sou. Mesmo temendo o fim, não fugirei dele, ao contrario, seguirei a seu encontro. No final, cerrarei meus olhos e, quando for a hora, irei abri-los novamente, terei, enfim, diante de mim, a luz com que sempre sonhei.

Adeus,

Augusto Borges.

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